Refrigerando o inferno: Como Acontece o Liberalismo

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English: Air Conditioning Hell: How Liberalism Happens

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Por Albert Mohler Jr. Sobre Teologia Bíblica

Tradução por Editora Fiel


Os teólogos liberais não tencionam destruir o cristianismo, e sim salvá-lo. Na verdade, o liberalismo teológico é motivado pelo que pode ser descrito como motivação apologética. O padrão do liberalismo teológico é muito claro. Os teólogos liberais estão absolutamente certos de que o cristianismo precisa ser salvo... de si mesmo.

LIBERALISMO: SALVANDO O CRISTIANISMO DE SI MESMO

Os liberais clássicos do início do século XX, conhecidos como modernistas, ressaltaram uma ampla mudança intelectual na sociedade e afirmaram que o cristianismo teria de mudar ou morrer. Como explica o historiador William R. Hutchison: “A marca peculiar do modernismo é a insistência de que a teologia tem de adotar uma atitude simpática para com a cultura secular e se esforçar, conscientemente, para concordar com ela”.[1]

Essa concordância com a cultura secular está profundamente arraigada no senso de libertação intelectual que começou no Iluminismo. O liberalismo protestante pode ter sua origem em fontes européias, mas chegou bem cedo na América – mais cedo do que muitos evangélicos contemporâneos estão conscientes. A teologia liberal exerceu grande influência onde dominava o unitarianismo e em muitos lugares além.

Logo depois da Revolução Americana, surgiram formas mais organizadas de teologia liberal, fomentadas por um senso de revolução e liberdade intelectual. Teólogos e pregadores começaram a questionar as doutrinas do cristianismo ortodoxo, afirmando que doutrinas como o pecado original, a depravação total, a soberania divina e a expiação vicária violavam os sensos morais. William Ellery Channing, um influente unitariano, falou por muitos de sua geração quando descreveu “o choque dado à minha natureza moral” pelos ensinos do cristianismo ortodoxo.[2]

Embora certo número de crenças centrais e doutrinas essenciais tenha sido submetidos a revisão liberal ou a rejeição franca, a doutrina do inferno foi muitas vezes objeto de maior protesto e negação.

Considerando o inferno e suas doutrinas relacionadas, o pastor congregacionalista Washington Gladden declarou: “Ensinar uma doutrina como essa a respeito de Deus é infligir ao cristianismo uma injúria terrível e subverter os próprios alicerces da moralidade”.[3]

O inferno tem sido um componente da teologia cristã desde a época do Novo Testamento, mas se tornou um odium theologium – uma doutrina considerada repugnante pela maioria da cultura e agora mantida e defendida somente por aqueles que vêem a si mesmos como conscientemente ortodoxos no compromisso teológico.

O romancista David Lodge fixou a década de 1960 como a data do desaparecimento final do inferno. “Em algum ponto nos anos 1960, o inferno desapareceu. Ninguém pode dizer ao certo quando isso aconteceu. Primeiro, ele estava lá; então, sumiu”. O historiador Martin Marty, da Universidade de Chicago, viu a transição como simples e, pelo tempo em que ela ocorreu, não percebida. Ele afirmou: “O inferno desapareceu, e ninguém percebeu”.[4]

Os teólogos e pregadores liberais que rejeitaram conscientemente o inferno fizeram isso sem negar que a Bíblia ensina com clareza a doutrina. Eles apenas afirmaram a autoridade mais elevada do senso de moralidade da cultura. A fim de salvar o cristianismo do prejuízo moral e intelectual causado pela doutrina, o inferno simplesmente teve de ir embora. Muitos rejeitaram a doutrina com prazer, reivindicando o mandado de atualizar a fé em uma nova era intelectual.

E os evangélicos de nossos dias? Embora alguns satirizem a típica pregação “lago de fogo e enxofre” da antiga geração de evangélicos, o fato é que a maioria dos membros de igreja pode nunca ter ouvido um sermão sobre o inferno – mesmo em uma igreja evangélica. O inferno se tornou obsoleto também entre os evangélicos?

REVISANDO O INFERNO: UM TESTE PARA O DESLIZE RUMO AO LIBERALISMO

Interessantemente, a doutrina sobre o inferno serve como um teste para o deslize rumo ao liberalismo. O padrão desse deslize é algo assim.

Primeiramente, uma doutrina deixa de ser mencionada. Com o passar do tempo, ela nunca é abordada ou apresentada no púlpito. Muitos congregantes nem sentem falta da menção da doutrina. À medida que o tempo passa, diminui o número daqueles que a mencionam. A doutrina não é negada nem ignorada, porém é mantida à distância. Sim, admite-se, essa doutrina tem sido crida pelos cristãos, porém não é mais um assunto que precisa ser enfatizado.

Em segundo, a doutrina é revisada e mantida em forma reduzida. Deve ter havido boas razões por que os cristãos creram historicamente no inferno. Alguns teólogos e pastores dirão que existe uma afirmação de moralidade essencial a ser preservada, talvez algo como o que C. S. Lewis chamou de “The Tao”.[5] A doutrina é reduzida.

Em terceiro, a doutrina é submetida a uma forma de zombaria. Robert Schuller, da Crystal Cathedral, conhecido por sua mensagem de “Pensamento de Possibilidade”, descreveu sua motivação para reformulação teológica em termos de recentralizar a teologia em “gerar confiança e esperança positiva”.[6] Seu método é mostrar a salvação e a necessidade de “tornar-nos pensadores positivos”.[7] O pensamento positivo não enfatiza o escape do inferno, “o quer que isso signifique ou o que quer seja isso”.[8]

Essa afirmação ridiculariza o inferno por rejeitá-lo em termos de “o quer que isso signifique ou o que quer seja isso”. Não se preocupe com o inferno, Schuller sugere. Embora pouco evangélicos adotem essa forma de ridicularização, muitos inventarão formas mais brandas de marginalizar essa doutrina.

Em quarto, uma doutrina é reformulada a fim de remover sua ofensa intelectual e moral. Os evangélicos têm submetido a doutrina do inferno a essa estratégia por muitos anos. Alguns negam que o inferno seja eterno, defendendo formas de aniquilamento ou imortalidade condicional. Outros negarão o inferno como um estado de tormento real. John Wenham afirma: “Tormento infindável fala-me de sadismo, e não de justiça”.[9] Alguns afirmam que Deus não manda ninguém para o inferno e que este é apenas a soma total das decisões humanas feitas durante a vida terrena. Deus não é realmente um juiz que decide, e sim um árbitro que se assegura de que as regras sejam seguidas.

O pastor Ed Gungor, de Tulsa, escreveu recentemente que “as pessoas não são mandadas para o inferno, elas vão para lá”.[10] Em outras palavras, Deus respeita a liberdade humana ao ponto de que deixará relutantemente que os seres humanos determinados a ir para o inferno tenham o seu desejo.

DESCULPANDO-SE PELA DOUTRINA DO INFERNO: A NOVA EVASIVA EVANGÉLICA

Em anos recentes, surgiu um novo modelo de evasiva evangélica. Havendo rejeitado a veracidade das Escrituras, os liberais protestantes e modernistas do século XXI rejeitaram a doutrina do inferno. Eles não entraram em tentativas elaboradas de argumentar que a Bíblia não ensinava essa doutrina – ele apenas descartam-na.

Embora esse padrão de comprometimento se encontre entre muitos que dizem ser evangélicos, esse não é o padrão mais comum no meio evangélico. Uma nova apologia esta agora evidente entre alguns teólogos e pregadores que afirmam realmente a inerrância da Bíblia e a veracidade da doutrina do inferno no Novo Testamento. Essa nova apologia é mais sutil, com certeza. Nela, o pregador diz algo assim:

“Sinto muito por dizer-lhe que a doutrina do inferno é ensinada na Bíblia. Eu creio nessa doutrina. Creio nela porque é revelada na Bíblia. Ela não está aberta a renegociação. Nós a recebemos e cremos nela. Gostaria que ela não estivesse na Bíblia, mas está”.

Afirmações como essa revelam muito. A autoridade da Bíblia é claramente afirmada. O pregador afirma o que a Bíblia revela e rejeita acomodação. Até aqui, tudo bem. O problema está em como a afirmação é introduzida e explicada. Em um gesto de desculpas, a doutrina é lamentada.

O que isso diz a respeito de Deus? O que isso significa quanto à verdade de Deus? Pode uma verdade ensinada com clareza na Bíblia ser ruim para nós? A Bíblia apresenta o conhecimento do inferno tal como apresenta o conhecimento do pecado e do julgamento: essa são coisas que precisamos saber. Deus nos revela essas coisas para o nosso bem e nossa redenção. À luz disso, o conhecimento dessas coisas é graça para nós. Desculpar-se por uma doutrina equivale a impugnar o caráter de Deus.

Cremos que o inferno faz parte da perfeição da justiça de Deus? Se não, temos problemas teológicos maiores do que os problemas relacionados ao inferno.

Vários anos atrás, alguém sugeriu com sabedoria que muitos bons cristãos modernos queriam “refrigerar o inferno”.[11] O esforço continua.

Lembre que os liberais e os modernistas agiram com base em uma motivação apologética. Eles queriam salvar o cristianismo como uma mensagem relevante em um mundo moderno e remover o detestável obstáculo do que era visto como doutrinas repugnantes e desnecessárias. Queriam salvar o cristianismo de si mesmo.

Hoje, alguns movimentos como a Igreja Emergente recomendam esse mesmo procedimento, por razões idênticas. Somos embaraçados pela doutrina bíblica do inferno?

Se isso é verdade, esta geração de evangélicos não terá falta de embaraços. O contexto intelectual presente não permite quase nenhum respeito pelas afirmações cristãs quanto à exclusividade do evangelho, a natureza do pecado humano, os ensino da Bíblia sobre a sexualidade humana e várias outras doutrinas reveladas na Bíblia. A lição do liberalismo teológico é clara – o embaraço é o sentimento inicial que conduz à acomodação e à negação teológica.

Tenha certeza disto: o embaraço não parará na refrigeração do inferno.

  1. William R. Hutchison, ed., American Protestant Thought in the Liberal Era (Lanham, MD: University Press of America, 1968, p. 4.
  2. Gary Dorrien, The Making of America Liberal Theology: Imagining Progressive Religion, 1805-1900 (Louisville: Westminster/John Knox Press, 2001), p. 18.
  3. Ibid., p. 275.
  4. Martin E. Marty, “Hell Disappeared. No One Noticed. A Civic Argument”, Harvard Theological Review, 78 (1985), p. 381-398.
  5. Ver C. S. Lewis, The Abolition of Man (San Francisco: HarperOne, 2001 [1948]).
  6. Robert Schuller, My Journey (San Francisco: HarperCollins, 2001), p. 127.
  7. Ibid., p. 127-128.
  8. Ibid., p. 127-128.
  9. John Wenham, Facing Hell: An Autobiography (London: Paternoster Press, 1998), p. 254.
  10. Ed Gungor, What Bothers Me Most About Christianity (New York: Howard Books, 2009), p. 196.
  11. Ver “Hell Air Conditioned”, New Oxford Review, 58 (June 3, 1998), p. 4.